poemas saturninos
10/07/2020
se eu fosse um prédio I
se eu fosse um prédio
como seria morar em mim?
meus canos entopem, minhas
lâmpadas piscam?
cheiro a mofo, meus
assoalhos rangem
espero que tenha ali
num cômodo escondido
uma janela enferrujada, de
vidro martelado
por onde entre uma luz que faça desenhos bonitos
na parede
se eu fosse um prédio II
minha carne de barro
e argamassa e gesso e tinta
meus ossos de aço
meu porão úmido
minhas varandas
meu fosso de luz
minha ventilação cruzada
minha campainha
minha caixa d’água limpa regularmente
meu terraço onde dá pra pendurar roupa
meu elevador e minhas escadas
minha casa de máquinas
meus registros e canos, e
meus extintores e disjuntores
minha garagem e meu portão
minhas portas e corredores
meus olhos mágicos,
tantos
meus ecos
a vida peculiar que se desenvolve
dentro e através de mim
decomposição
as paredes se revelando sob a tinta
o desenho harmonioso do mofo
a música das infiltrações
a persistência da vida nas ervas daninhas
e nos ratos, aranhas e cupins
os feixes de luz entrando por onde não deviam
iluminando lugares que já tinham se habituado à escuridão
o ar úmido e morno e pungente
os sinais de tudo que já aconteceu e
a sensação do fim iminente
e a pilha disforme de uma matéria
que um dia foi sólida
e continua matéria, mas de outra forma
e em outro lugar
um vazio que é logo preenchido
por algo com mais utilidade
e a persistência da vida
que é a persistência da morte
linhas
quando escrevo, minhas linhas saem
naturalmente paralelas
tento me livrar dessa rigidez porque
penso que ela me prende
mas talvez o que me prenda seja o fato
de me considerar presa
e buscar outra forma de ser
além da que me sai naturalmente
talvez eu deva seguir escrevendo
nas minhas linhas tão certinhas
mas tão obstinadamente e tão furiosamente e tão visceralmente
que as linhas tremam
e as palavras pulsem e se espalhem
e adentrem algumas cabeças
além da minha
método
sempre me falhou a disciplina
minhas ações vêm em lampejos
selecionados de tudo que lentamente sedimenta
dentro de mim
eu quero que meu corpo seja ação e não apenas
recipiente de pensamentos furiosos
mas negar o pensamento não é boa estratégia
deixar um produto do pensamento puro sair
é transformar o corpo em ação.
meu corpo está aqui e agora escrevendo.
muitas partes de mim mobilizadas no encontro
do grafite com o papel